3 de agosto de 2020

Conquista de vias: um ato de criação e, sobretudo, de publicação.

    Vias de escalada podem ser criadas do chão ao topo, cuja forma se convencionou chamar conquista. Podem ser criadas (como na maioria das esportivas hoje em dia) desde o topo por rapel ou top-rope e cuja forma se convencionou chamar equipagem. Podem ser só em chapeletas, só em móvel ou mistas.

Renato Russo testando os primeiros movimentos da Colômbia 8a na Fazenda Invernada em 2006.

    
A natureza das duas atividades é bem distinta, mas a finalidade é bem parecida. As duas formam uma via, rota, produto, obra e criação. A conquista desde o chão exige que o escalador faça a escalada do trecho jogando com os elementos que a rocha expõe e que ele dispõem. Pode ser em livre ou artificial. Em livre hoje é o ideal, utilizando o artificial para fazer as proteções fixas ou testar peças. Mas também podem ser conquistadas vias essencialmente de escalada estilo artificial. Já equipar uma via não exige esse mesmo jogo com a rocha, com seus elementos e os equipamentos e técnicas disponíveis. Exige também boa leitura da rocha - ainda mais que na conquista - para colocar as proteções em bom lugar.


    Independente de tudo isso, nos dois casos, existe a criação de uma rota de escalada que se torna pública. Muito pelo contrário do que alguns pregam por ai, a criação de uma via (por conquista ou equipagem) não torna aquele pedaço de rocha seu, de sua propriedade. Na maioria dos casos, em lugares abertos, privados e públicos, uma via criada é um ato de publicação daquele pedaço de rocha. Ele se torna de todos, de uso comum. Se alguém teve o direito de escalar algum trecho de rocha em um lugar aberto ao público, todos têm o direito de escalar aquele trecho. Há, é claro, um respeito (questão de ética) ao que passou primeiro, aos primeiros ascensionistas...são muitos os documentos brasileiros que tratam da questão do "Direito Autoral". De acordo com o "Código Brasileiro de Ética na Escalada", por exemplo:

"Dos Pontos De Segurança (Grampos Fixos ou Chapeletas)

Durante uma conquista deve ser observado o posicionamento dos pontos de segurança, de modo que em hipótese alguma de queda, o escalador toque o solo, arestas ou saliências, representando perigo à sua própria integridade;
É proibida a adição de pontos de segurança em escaladas já conquistadas, sem autorização dos conquistadores;
Em caso de regrampeação os escaladores não possuem poder algum para descaracterizar qualquer rota, transferindo a original proteção dos pontos de segurança, de acordo com o artigo primeiro anterior;

Da Conquista:

Nenhum escalador possui o direito de reservar para si qualquer rota ou pedaço de pedra, somente se estiver colocando evidentes esforços para efetuação de seus objetivos, seja aproximação, ou colocação de grampos;

Em caso da modificação das intenções o escalador tem a responsabilidade de expressá-las à comunidade local, deixando-a aberta a todos;

Toda conquista deverá ser divulgada no catálogo que deve ser editado anualmente;" (Código Brasileiro de Ética na Escalada, 1993, grifos nossos)


    A "reserva" de um trecho é também um respeito aos conquistadores, pelo esforço empreendido na aproximação (criação de trilhas, negociação com donos de terras etc.) mas tem um limite. Uma via abandonada durante anos é claramente uma modificação de intenções dos escaladores e deve ser liberada para que outras cordadas possam usufruir do que é público, no sentido de ser de todos: o direito à escalada (lembrando o "Walls are meant for climbing" da campanha da marca The North Face" e toda a luta do direito ao acesso aos picos de escalada no mundo todo)

    Abandonar a ideia de que a conquista ou equipagem de uma via torna aquele trecho de rocha "seu" é fundamental para a formação de um montanhismo mais democrático. Menos ditatorial. Abrir uma via é publicar, no sentido de tornar público, para todos os que se dispuserem a encarar o que encarou o conquistador, respeitando a obra, não a modificando.

Foto do Matheus Prado enquanto limpava a última enfiada da via "Tempos Modernos" D1 6 VIIb E2 120 metros na Pedra da Divisa, São Bento do Sapucaí -SP. No topo, estava batendo o segundo furo da P4 (essa é a primeira e única via que alcança o topo da Pedra da Divisa, podendo descer por caminhada). Conquistamos em 2018 desde o chão utilizando técnicas mistas de livre e artificial, aproveitando ao máximo as fendas para utilização de proteção móvel e agarras pros cliffs...fazendo o mínimo de furos para deixar uma via mais moderna...tudo sem usar furadeira...

    Abraços, André.

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